Os dados disponibilizados pela Direcção Geral de Saúde (DGS) aos cientistas que têm analisado a evolução da covid-19 em Portugal, e que têm servido de base ao Governo e aos médicos para decidir como combater a pandemia, contêm erros graves e alguns até caricatos.
O alerta é dado por um grupo de 12 investigadores da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto num estudo que foi publicado numa revista científica internacional.
Este estudo debruçou-se, em concreto, sobre uma outra investigação realizada em torno do “papel das pré-condições de saúde nas mortes por covid-19 em Portugal“, que teve como base os dados do Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica (SINAVE) recolhidos quanto aos primeiros 20.293 casos de infecção.
Aquela primeira pesquisa concluiu que a idade era o principal factor de risco para a morte por covid-19, enquanto que “comorbidades como as doenças cardíacas e renais, e as desordens neuro-musculares, tiveram muito menos peso no aumento das probabilidades de morte” e a “diabetes não foi significativamente associada com a mortalidade, o que é inesperado”, como vinca a investigação agora publicada no Journal of Clinical Medicine.
O estudo já tinha sido divulgado em Agosto, mas só foi publicado no final de Outubro, após ser alvo de revisão científica.
A análise que tem como primeira autora a investigadora Cristina Costa Santos, do Centro de Investigação em Tecnologias e Serviços de Saúde (CINTESIS) e do Departamento de Medicina da Comunidade da Universidade do Porto, conclui que “os dados extremamente altos para a idade e os baixos efeitos de algumas comorbidades estão, provavelmente, relacionados com a pobre qualidade da base de dados utilizada”.
Em declarações à TSF, Cristina Costa Santos explica que há casos de homens com covid-19 registados como “grávidos” e que há um doente com 134 anos. Além disso, 19 infectados terão sido registados como tendo tido a doença antes de o primeiro caso ter sido diagnosticado em Portugal, e, portanto, antes de se terem começado a registar os dados.
“Em Março, a base de dados tem mais casos e mais mortes do que estão nos boletins [diários da DGS] e não conseguimos justificar muito bem porquê, e em Junho, não temos mesmo nenhuma morte e de facto, se formos ver aos boletins, encontramos 155 mortos”, revela ainda a investigadora à TSF.
A DGS só disponibilizou aos investigadores a parte das informações do SINAVE, embora haja outros dados recolhidos pela entidade.
Mas Cristina Costa Santos repara que esta forma de actuar é “perigosa”, pois pode levar a “artigos científicos que tiram conclusões enviesadas” e que são “importantes para tomar decisões políticas e médicas de como vamos gerir a pandemia”.
Comorbidades podem ter maior impacto nas mortes
No estudo publicado no Journal of Clinical Medicine, os investigadores apontam que os dados da DGS disponibilizados aos cientistas têm “problemas importantes de qualidade“.
A título de exemplo, apontam algumas discrepâncias registadas após “uma actualização da base de dados, apresentando os mesmos casos mais os que testaram positivo para covid-19 em Maio e Junho e corrigindo alguma informação”.
“Na versão actualizada da base de dados, a proporção de pessoas sem comorbidades mudou massivamente, mesmo nos dados que já estavam disponíveis na primeira versão”, apontam os autores da pesquisa.
“Globalmente, na primeira versão da base de dados, 83% dos casos de covid-19 foram registados como “não tendo comorbidades” e não havia casos com informação em falta sobre se o paciente tinha ou não comorbidades, enquanto que na versão actualizada, apenas 32% dos casos foram registados como “não tendo comorbidades” e 46% dos casos tinham informação em falta sobre se o paciente tinha ou não comorbidades”, acrescentam.
Isto implica que na primeira versão da base de dados, os casos de covid-19 onde não havia informação sobre comorbidades “foram registados como não tendo comorbidades” e “isto pode explicar a inesperada alta taxa de probabilidade” de morte registada para as pessoas mais idosas “e o baixo impacto das comorbidades nas probabilidades de morte”, concluem os investigadores.
Pondo em causa “a confiabilidade” da informação, os autores da pesquisa reforçam os “perigos de modelar os factores de risco usando bases de dados de baixa qualidade”, considerando que é preciso melhorar a informação com a integração de “cientistas de dados treinados” no processo.
SV, ZAP //