Manuel Matola
Os imigrantes brasileiros Dori Nígro, Georgia Quintas e Paulo Pinto conheceram-se em Recife, mas foi no Porto, norte de Portugal, onde decidiram “abrir o álbum familiar” a um público amante da arte para os revelar imagens latentes de uma sociedade marcada pela migração forçada para o nordeste do Brasil, uma das principais portas de entrada das primeiras pessoas africanas traficadas no único país lusófono da América latina, com auxílio do empresário português Joaquim Ferreira dos Santos, 1º conde de Ferreira.
A lembrança do passado escravocrata dessa destacada figura do comércio de escravos, conhecido como o “eterno imigrante do sul global”, e que hoje é o patrono do Centro Hospitalar do Conde de Ferreira, levou à censura de parte da exposição logo no primeiro dia.
É um “ato de censura à liberdade de expressão”, denunciaram os artistas brasileiros.
Quando há dias Dori Nígro, Paulo Pinto e a curadora Georgia Quintas inauguraram a mostra no contexto da Bienal Fotografia do Porto, que decorre até ao dia 01 de junho, não imaginavam que a exposição Vento (A)Mar fosse ser alvo de censura por “potencial desconforto” causado à direção do Centro Hospitalar do Conde de Ferreira. A instituição é a anfitriã do evento e detestou ver no seu edifício a instalação Adoçar a Alma para o Inferno III, obra que discute o passado escravocrata do patrono daquele estabelecimento hospital psiquiátrico.
O que era para ter sido uma simples exibição de uma obra de arte virou a insígnia de banimento da própria arte por fazer referência ao passado colonial do comerciante português que mais escravos vendeu na América do Sul, através do Recife. Reza a História que pela mão do 1º Conde de Ferreira, cerca de 10 mil pessoas foram traficadas de Angola e de vários países africanos para o Brasil.
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00:06A direção do Centro Hospitalar do Conde de Ferreira, tutelado pela Santa Casa da Misericórdia do Porto (SCMP), decidiu assim encerrar a sala onde estava instalada a obra alusiva ao passado esclavagista do comerciante e encerrou igualmente o debate da censura afirmando que “nada tem a acrescentar à sua posição inicial, não pretendendo alimentar qualquer tipo de polémica”, segundo escreve o jornal Público.
Entretanto, Dori Nígro, Georgia Quintas e Paulo Pinto repudiaram em nota o encerramento da sala – ordenado pelo administrador executivo do CHCF, Ângelo Duarte, no decurso da inauguração da exposição – porque, dizem, “fere um direito constitucional inalienável e atinge não só o conjunto da obra artística Adoçar a Alma para o Inferno III, como toda a equipa da exposição e da Bienal, toda a classe artística e todos/as aqueles/as que defendem a democracia”.
Em pleno Dia de África, 25 de maio, a socióloga Cristina Roldão lembrou o papel do Conde Ferreira ao destacar em texto de opinião que “foi através do dinheiro sujo do tráfico esclavagista, à custa da vida de cerca de 10 mil pessoas negras, que se construiu o Hospital do Conde de Ferreira, [que se ergueram] 120 escolas primárias e que foram apoiadas inúmeras obras sociais, como as Misericórdias”.
A docente universitária e ativista antirracista acrescenta: “Não tendo demonstrado em vida ser um homem de ´causas sociais`, Joaquim Ferreira dos Santos ter-se-á dedicado às mesmas, postumamente, com o objetivo de limpar o seu nome que, com a abolição [da escravatura], ficara publicamente manchado, como muitos dos que enriqueceram com o tráfico. Nada que trabalhos como Conde de Ferreira & C.ª, de José Capela [investigador], já não nos tivessem mostrado há vários anos ou que projetos recentes como Joaquim – O Conde de Ferreira e Seu Legado, de Nuno Coelho [investigador], não discutam”.
MAS O QUE RESTOU DA EXPOSIÇÃO VENTO (A)MAR?
Ao jornal É@GORA, os autores da exposição explicam a essência do Vento (A)Mar e asseguram que, no seu todo, o trabalho transcende a obra censurada.
“A exposição o Vento (A)Mar traz memórias, caminhadas, jornadas entre essas diásporas [no Porto], cidade em que a gente vive, e Pernambuco”, resume Dori Nígro ao falar sobre a sua cidade natal e de Geórgia Quintas, onde anos mais tarde Paulo Pinto se radicou antes de o trio voltar a se cruzar no Porto, a segunda maior cidade de Portugal.
“É uma exposição que é também o abrir do nosso álbum familiar e dessa forma revelamos imagens latentes da sociedade. Ao andar entre essas diásporas é também transgredir essas diásporas”, diz Dori Nigro.
Em Vento (A)Mar, Dori Nígro e Paulo Pinto investigam o território simbólico-poético da ancestralidade e os espaços de memória entre Pernambuco, seu estado de origem, e o Porto, onde vivem atualmente. Partindo da imagem do barco e dos fios de que se tece a jornada por territórios e imaginários, os artistas estabelecem uma rede de processos poéticos e de pensamento crítico em torno das noções de fronteira, pertença, refúgio, memória, narrativa e identidade.
Ao jornal É@GORA, Paulo Pinto aponta algumas situações inquietantes que terão contribuído para a criação da exposição Vento (A)Mar: “Eu penso que essa procura sobre o nosso caminhar de Pernambuco, da nossa nação [Brasil], até aqui não é uma [linha] reta, não é uma seta e não é só uma travessia, são inúmeras. São camadas arqueológicas afetivas de outras travessias. E pensar sobre o Vento (A)Mar nos levou para o universo das nossas avós e outras águas que nos banham constantemente, principalmente, como cidadão português do Porto, conhecido como eterno imigrante do sul global”.
A curadora Georgia Quintas também explica “a exposição [que] se estabelece como um grande resumo a partir das inquietações dos artistas, da pesquisa artística do Dori e do Paulo que reviram camadas muito simbólicas, subjetivas, questionadoras sobre histórias de vida familiar, histórias femininas de matriarcas – termo muito pouco utilizado comparativamente ao legado nocivo do patriarcado. Portanto, a exposição o Vento (A)Mar é uma estruturação muito a partir dessa memória das avós maternas e paternas dos artistas, e do resgate mas não apenas memorialista. É de um resgate de ressignificação, das imagens que são sempre um fluxo sempre muito enraizado nos artistas, mas também de uma imagem que nos traz para contemporaneidade toda a complexidade de questões como a violência, o apagamento da História, não só sobre o feminino no sentido social, mas também no sentido colonial. Portanto, nada está isolado”.
Na verdade, acrescenta Paulo Pinto, a exibição resulta de “todas as camadas sociais que envolvem essa denominação”. De entre as “situações inquietantes concretas para além das metafísicas” o artista baseia-se noutras premissas: “Eu uso lugares que ocupamos e que é a nós destinadas, apontadas quando desafiamos a andar no mundo dentro do nosso país e dentro do nosso outro país. São lugares que nos chegam e nos acolhem. Chegamos ao panótico do Hospital Conde Ferreira, antigamente, o lugar dos alienados e hoje é hospital psiquiátrico, revelando a necessidade de a gente tocar na saúde mental quando a gente toca na nossa História, nas nossas travessias [pois] não há como não tocar na saúde mental de forma afetiva” nesse processo migratório.
E acrescenta: “É como se fosse aí um alicerce, a gente pegando tudo que sobrou, tudo que é sobejo, que é base, restos, sobras de outras pessoas, de outros tempos, de outras culturas e a gente vai construindo outros solos, mas a gente faz isso com respeito consciente do que está por baixo, sabendo que um dia a gente também vai servir de solo para outras construções. Então, o panótico despertou para outras travessias que nós imaginávamos talvez mais físicas, externas. E o panótico nos trouxe para travessias também internas que nos marca, nos pontua.
Algo quase patológico, segundo admite o artista em declarações ao jornal É@GORA.
“E aí não há como a gente não falar do cuidado da saúde mental nessas travessias e recordar os caminhos de nossas avós, caminhos de outras ancestralidades que (re)caem, que perpassem pela construção do próprio hospital, da banca, educação, das escolas portuguesas, pela construção da religiosidade, da caridade portuguesa, pela construção de uma identidade nacional que passa pelo doce, pelo açúcar. E a gente sabe que para ser açúcar é preciso moer, aferventar o caldo de uma cana para que depois esse açúcar chegue triturado, moído como também foram moídas as pessoas para que o açúcar acontecesse. O doce chega à mesa, às relações através do processo de moagem. Acho que esse é nosso maior desafio: ter dado nosso corpo-memória e ancestralidade que trazemos para moer, tentando apresentar essa doçura, mas que é uma doçura que traz também algumas dores, alguns entraves”.
Questionado sobre como é que tudo começou até chegarem a essa exposição, Dori Nigro responde: “A gente utiliza o barco como metáfora desse Vento (A)Mar pensando o mar enquanto essa grande encruzilhada, esse mar que nos liga e que nos atravessa e também somos atravessados por ele. E aqui a gente pensa na nossa ancestralidade a partir da ideia de barco que promove migrações forçadas com recorte étnico racial, colocando pessoas negras escravizadas numa situação de atravessamento forçado. Mas também é a pensar nisso como nós no Porto vamos olhar para esse passado colonial [no] presente estando nesse hospital que foi construído com dinheiro da escravatura pelo Conde Ferreira. É pensando nesse hospital e nas 120 escolas construídas com esse dinheiro de pessoas escravizadas. E ao olhar para esse barco criticamente a gente está voltando para um passado que se repete e tem ressonância hoje na saúde mental portuguesa e na educação portuguesa. E ao olhar para esse espaço em que estamos que fala também da saúde mental a gente fala também que estamos aqui dispostos em celas”.
MEMÓRIA DE DUAS MULHERES ENCARCERADAS PELA VIDA
Tal como Recife e o Porto são duas cidades geminadas, a História da exposição realça a memória de duas mulheres encarceradas pela vida e cujas liberdades se encontram hoje no chão de uma cidade ressignificada na ideia da cela.
“É uma forma também de, a partir dessas celas, nós falarmos da nossa memória ancestral, aqui na memória das nossas avós maternas e paternas. [Por exemplo], a minha avó Elisabete, que viveu uma migração forçada saindo do interior para o litoral, para capital, em busca de melhores condições de vida e que viveu presa numa cela durante o regime militar. E aqui ela está noutra cela. A gente ressignifica essa ideia da cela tirando esse peso desta cela de presídio e onde as pessoas eram presas e taxadas de loucas e de revoltosas. E além da minha avó materna Elisabete, a gente ressignifica também a minha avó paterna Antónia, trazendo-a para essa cela, mas convocando as pessoas a entrarem para a cela. Ou seja, enquanto a minha avó materna viveu presa num regime militar na cela, a outra viveu presa a um casamento diante de uma sociedade machista. E aqui a gente desconstrói [os casos] trazendo a memória dessas mulheres, dignificando-as” enquanto mulheres, diz Dori Nigro, destacando a mensagem central da mostra patente na bienal.
“E ao olhar para esse espaço em que estamos inseridos, que é um espaço de saúde mental, a gente ressignifica também as celas que aqui estão e a saúde mental pelo cuidado”, diz, resumindo:
“Então, é um projeto que, ao retomar nossas identidades ancestrais, das nossas avós, das pessoas que, historicamente, foram marcadas, raptadas e lançadas no mar, é uma forma de moldar as nossas identidades como algo que não é fixo, que tem movimento e eu movimenta, desestabiliza as coisas. Este movimento faz com que olhemos para o passado e presente com inquietude. Faz com que eu olhe para minhas fotografias apagadas com desejo de reparar, assim como para as identidades outrora apagadas numa história pouco ou mal contada e que se repete reproduzindo violências a partir deste espaço no qual estamos”, assinala.
Para Dori Nígro, ao usar as imagens deste passado colonial, “é interessante pensar criticamente de que forma essas cidades se constituíram e como o passado se reverbera no presente através de práticas neocoloniais”, pois é uma forma de olhar “para os nossos arquivos pessoal, coletivo e públicos da cidade e transforma-los, porque é um olhar crítico que faz com que a gente transforme as coisas e construa as nossas identidades. E aqui falo dessa identidade construída entre corpos diaspórico e afrodiaspórico que vêm do Recife, de Olinda, uma cidade construída aos modos do bairro alto de Lisboa – pelo portuense Duarte Coelho a mando do D. João III, quando invade Olinda, a cidade onde eu cresci e que antes se chamava Marim dos Caetés”.
É na base dessa perspetiva que o artista aproveita “também falar, a partir do Porto, de um portuense que saí daqui no passado e vai construir essa cidade dizimando a população indígena que lá vivia e transportando pessoas negras tornadas escravas pelo trabalho do açúcar [pelo que a exposição] é também [uma maneira de] falar do presente porque a gente está a falar de espaços como esse hospital e outros que foram construídos com esse doce-amargo, o açúcar colonial. Então, ao olharmos para o passado estamos a falar do presente para poder construir aqui a possibilidade de um futuro diferente”, diz.
“Então”, conclui, “o Vento (A)Mar é essa caminhada, essa encruzilhada, esse olhar crítico para as nossas vidas, para a vida das pessoas que vieram antes de nós para que a gente possa aqui caminhar para um futuro diferente e pegando aqui no refúgio, nas narrativas, no mito como uma forma de apaziguar a dor e pensar nas nossas identidades enquanto algo em constante movimento e mudança”.
A curadora Georgia Quintas finaliza apontando a jornada por esses territórios reais [Porto e Pernambuco] e os territórios imaginários que são em si o reflexo de construção de refúgios, de memória e narrativas que refazem a identidade dos artistas brasileiros, hoje imigrantes residentes na segunda cidade mais importante de Portugal.
“Por isso que desta constituição de rizoma de algo que se vai ramificando, criando raízes em vários pontos de vista. Então, nós temos a questão das mortes precoces, seja de mulheres, crianças, [que, na verdade, são] uma complexidade social, antropológica e histórica que vem de um nordeste brasileiro. E essa ponte que se faz com a cidade do Porto, devido ao facto de os artistas estarem aqui radicados, é interessante porque eles conseguem dialogar com elementos que são raízes e contextos que foram para esse além mar”, afirma Geórgia Quintas.
Para a curadora, Dori Nigro e Paulo Pinto “quase que encontram um refúgio ao inverso: quer seja da exploração humana, de bens materiais no Brasil, mas que também vem a criar aqui na contemporaneidade um refúgio que é de uma outra dimensão. Posso até utilizar o termo reparação mas acho que seja muito mais de construção de histórias de vida e narrativas, obviamente com dispositivos artísticos que vão alinhavar, vão tecer fios, vão criar esse grande tecido simbólico e reflexivo. Portanto, quando eu digo refúgio é um refúgio que foi estabelecido de maneira forçosa com a escravidão no nordeste brasileiro com relações da cana do açúcar, desse comércio profundo e danoso, e que na contemporaneidade vence com uma leitura crítica que faz esse trânsito novamente não de diáspora, mas de opção pelos artistas de estarem aqui”.
Portanto, diz Georgia Quintas, “é uma diáspora de trazer o passado ao presente e criar outros tecidos de perceção sobre as questões coloniais que afetaram tanto o universo feminino”. (MM)